segunda-feira, 12 de março de 2012

O Homem Mais Feliz do Mundo


Este é o homem mais feliz do mundo?
Segundo a ciência, a resposta é sim. Mas o próprio monge francês Matthieu Ricard diz que a questão do título não importa. Mergulhe na mente do budista (e Phd em biologia) e entenda por que você não precisa viver em um mosteiro para ser feliz. Basta começar a meditar
TEXTO E FOTOS: HAROLDO CASTRO, DE KATMANDU
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Inspiração nas alturas: Matthieu Ricard no mosteiro Shechen, em Katmandu, Nepal. O monge francês vive no Himalaia há 36 anos
No ano passado recebi centenas de e-mails de correntes. Um deles era sobre o "homem mais feliz do mundo". Abri o arquivo, vi que se tratava de um monge francês residente no Himalaia e depois descartei o e-mail. Retive o nome do afortunado, mesmo achando estra-nho que um budista pudesse fazer tanto marketing pessoal. Alguns meses depois, quando preparava minha viagem ao Nepal, lembrei que o tal monge da internet vivia em Katmandu e fui atrás dele.
Matthieu Ricard mora no monastério Shechen, no bairro tibetano Bouda. Para chegar lá, naveguei por um emaranhado de ruelas. Passei por lojas de artesanato para turistas e de artigos religiosos para devotos. Entrei e dei de cara com um imponente e colorido prédio quadrado, de arquitetura tibetana: o templo principal. Ao seu redor estão os aposentos dos religiosos, com dezenas de portinholas enfileiradas em dois andares. Gyurmed Lodro, um monge nepalês de 29 anos, recebe-me. "Somos 300 aqui. Os mais idosos vieram como refugiados do Tibete, chegaram cruzando as montanhas. Os jovens nasceram no Nepal ou na Índia", diz Gyurmed. Ele me mostrou a clínica do monastério, um trabalho social que beneficia a comunidade tibetana local. "Os pobres pagam apenas a soma simbólica de 20 rúpias (R$0,50). Atendemos 45 mil pacientes por ano com homeopatia, acupuntura, medi-cina natural tibetana, clínica dental e medicina da mulher." Orgulho dos membros do mos-teiro Shechen, a clínica é financiada por doações de budistas estrangeiros e os direitos autorais dos livros de Matthieu Ricard.

Gyurmed levou-me até o escritório do monge francês, no segundo andar de um dos prédios de Shechen. Ricard está visivelmente ocupado. Sobre sua mesa de trabalho, repleta de papéis e livros, repousa um passaporte europeu. "Viajo amanhã para Paris. Enquanto conversamos, aproveitarei para arrumar minha papelada", diz. Conto que o procuro por causa de um spam. Ele sorri, abana a cabeça e dá um suspiro profundo. "Nunca teria me autoproclamado como o homem mais feliz do mundo. Isso começou com um documentário da televisão austríaca. Em seguida, o jornal britânico 'The Independent' publicou uma reportagem anunciando que eu era a pessoa mais feliz do mundo", afirma. "O que aconteceu é que participei de um estudo na Universidade de Wisconsin [EUA], para medir os benefícios da meditação. Todos os 12 voluntários possuíam uma longa experiência, com mais de 10 mil horas de práticas meditativas", diz Ricard.
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Arte e meditação: monge chega a um templo do mosteiro Tashilhunpo, em Shigatse, no Tibete, para sua prática diária
Os participantes enfrentaram uma bateria de eletroencefalogramas e tomografias cerebrais. Os resultados comprovaram que o grupo apresentava um alto nível de ondas gama (de "emoções positivas") no córtex pré-frontal esquerdo, local associado com a felicidade e a alegria. No lado direito, que lida com ansiedades e frustrações, as ondas eram inexistentes. Talvez para exercitar a humildade, Ricard não confirma que seus resultados foram os melhores. "A importância da pesquisa foi provar que a mente é maleável. As conexões no cérebro não são fixas. Com esforço e tempo, elas podem ser modificadas, assim como a maneira como interpretamos o mundo", diz.
Filho do filósofo Jean-François Revel e da pintora Yahne Le Toumelin, o monge é autor de vários livros. Dois estão disponíveis no Brasil (veja o quadro "Vá fundo"). Ele também é fotógrafo, com vários ensaios publicados. Por ter nascido em um berço rodeado de intelectualidade e arte, pergunto se as influências externas ajudam uma pessoa a ser feliz. "Na busca da felicidade, geralmente olhamos para fora, procuramos elementos externos e queremos possuir bens materiais. Quando as coisas vão mal, queremos corrigir externamente. Mas o controle que temos dos elementos exteriores é limitado e geralmente ilusório", afirma. "Apenas uma porção pequena da felicidade, digamos entre 10% e 15%, relaciona-se com condições externas. Certamente, é mais difícil ser feliz se não ultrapassamos o estado de miséria. Uma boa educação, ter acesso à informação ou viajar ajudam. A genética também entra nessa equação: cerca de 25% de nosso potencial parece ser determinado por nossos genes. Mas tudo isso não é o suficiente para um indivíduo alcançar a felicidade. Os restantes 60% ou mais dependem de nosso estado mental. É a mente que traduz as condições externas em felicidade." Ou em sofrimento.
As dores da alma formam um tópico notável no budismo. A busca de sua compreensão e eliminação foram o tema central do primeiro sermão de Sidarta Gautama, o Buda, no ano 528 a.C. em Sarnath, na Índia. O ensinamento tem quatro princípios simples, chamados de Nobres Verdades. A vida é uma cadeia de sentimentos. A causa do sofrimento é o apego, a ignorância ou a aversão. Para que o sofrimento cesse, é necessário cultivar o amor incondicional, desprender-se dos objetos de desejo e vencer a ignorância e a aversão. Enfim, para que isso aconteça, o Buda recomenda seguir um caminho de oito passos corretos (a compreensão, o pensamento, a linguagem, a ação, o modo de vida, o esforço, a consciência e a concentração corretos), sempre desenvolvendo a compaixão.



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Monja feliz: Todzi, 18 anos, descobre o Tibete em sua primeira peregrinação. Ela mora na China, mas seus antepassados são tibetanos
"A mente é a especialidade do budismo", diz Ricard. "Não considero o budismo uma religião. Não perdemos tempo discutindo Deus. A questão é irrelevante. Buscamos saber como a mente funciona. Precisamos refinar a percepção de nossa realidade." Aí é que entra o papel da meditação. Uma mente mais tranqüila responde melhor aos desafios da vida, enquanto as emoções descontroladas levam ao caminho oposto. O ódio, a inveja, a raiva ou a arrogância são sentimentos que minam a felicidade. Parece simples. Mas por que continuamos sofrendo? Como se estivéssemos enfeitiçados por uma obsessão, persistimos em focar nossa atenção no sofrimento. Isso só provoca o aumento da agonia. Quando um tema nos angustia, por que nossos pensamentos insistem em regressar à origem da dor? A resposta está em nossa própria mente: ela não tem o treinamento adequado. Os sábios budistas confirmam que não basta erradicar todo e qualquer tipo de sofrimento para encontrar a felicidade. "Além de deixar de lado as emoções negativas, também devemos desenvolver as positivas", diz Ricard.
O OUTRO CANDIDATO
O título de "homem mais feliz do mundo" de Matthieu Ricard é dividido com ao menos mais um monge budista. O nepalês Yongey Mingyur Rinpoche participou das mesmas pesquisas que Ricard, supervisionadas pelo professor Richard Davidson, da Universidade de Wisconsin (EUA). Rimpoche também alcançou elevados índices de atividade das ondas gama. Escreveu um livro, já traduzido para o português, "A Alegria de Viver". Seu colega Matthieu Ricard assinou o prefácio da edição francesa. "Em sua essência, o budismo é muito prático", escreve Mingyur Rinpoche. "Trata-se de fazer coisas que encorajem a serenidade, a felicidade e a confiança - e evitar outras que provoquem a ansiedade, a desesperança e o medo."
Ele se baseia no princípio de que dois estados mentais não podem ocorrer simultaneamente. "Podemos ter um acesso de amor e outro, imediatamente depois, de ódio. Mas não podemos sentir ódio e amor ao mesmo tempo por uma mesma pessoa ou objeto", afirma o monge. "Devemos habituar nossa mente a substituir emoções negativas por positivas. Quanto mais cultivarmos o amor e a bondade, menos espaço teremos para a raiva e o ódio em nossa paisagem mental. É importante saber quais são os antídotos que correspondem a cada uma de suas emoções negativas."
Há quem diga que a felicidade é uma sucessão de pequenos prazeres. Mas Ricard ressalta que "o prazer é uma experiência fugaz - depende de circunstâncias exteriores, de um momento ou lugar específico. Quase sempre está ligado a uma ação". Ele lembra que algumas pessoas sentem prazer até em se vingar e em torturar os outros. "A felicidade autêntica não está ligada a uma atividade. É um estado de ser, um profundo equilíbrio emocional." Ricard argumenta que não existe razão para não buscarmos sensações agradáveis, sejam elas relacionadas com a natureza, com a arte ou ao lado de pessoas queridas. "Os prazeres tornam-se obstáculos somente quando perturbam o equilíbrio da mente e nos levam à obsessão por gratificações. O prazer não é inimigo da felicidade. Se é vivido num estado de paz interior e liberdade, o prazer adorna a felicidade, sem obscurecê-la", afirma.
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Retratos da felicidade budista (da esquerda para a direita): a paz de espírito de um noviço do monastério Taktsang, no Butão; a alegria de uma birmanesa no santuário da Rocha Dourada em Kyaikhtiyo, Mianmar; o sorriso franco de um jovem religioso do mosteiro Hemis, no Ladakh; a introspecção de um monge em prece no templo Jokhang, no Ladakh. Seus dedos entrelaçados formam um gesto sagrado, um mudra
Meu diálogo com Ricard estende-se por mais tempo do que eu esperava. Apesar de ele não demonstrar nenhum estresse com os preparativos de sua viagem, meu desconfiômetro avisa que devo encerrar a entrevista. Ele reconhece a gentileza e, generoso, oferece, em formato eletrônico, os originais em francês de seus dois livros mais célebres. Na saída de seu escritório, encontramos um casal de budistas franceses. Eles perguntam qual deve ser a postura em relação à China e ao Tibete. "Conversem com amigos, discutam o tema e falem com seus deputados. É importante informar a todos sobre o genocídio cultural que acontece no Tibete", responde.
Saio do escritório de Ricard e ouço toques de tambores. Atraído pelo som, chego ao templo principal de Shechen. Alguns monges, visivelmente atrasados para o ritual, retiram suas sandálias e sobem a escadaria com agilidade. A enorme porta decorada está aberta. Sinto-me convidado. Depois de conversar com Ricard sobre as vantagens de desenvolver uma mente mais sadia, em harmonia com o mundo e consigo mesmo, não hesito em entrar no templo. Encontro uma almofada e sento para meditar. Deixo que os mantras embalem minha mente. Tomo consciência de onde estou. Agradeço o presente e lembro-me daquele spam que me inspirou a encontrar um ser humano tão notável como Matthieu Ricard. Talvez ele não seja o "homem mais feliz do mundo", mas está fazendo sua parte para ajudar outras pessoas a serem mais felizes.

Haroldo Castro tem mais de 30 anos de experiência como fotógrafo, repórter, diretor de documentários e estrategista de comunicação. Conhece mais de 130 países e morou no Brasil, na França e nos EUA. Encontre um link para seu blog, o ótimo Viajologia, em www.galileu.globo.com

domingo, 11 de março de 2012

MEDITAÇÃO


Para nós, ocidentais, meditar significa refletir a respeito de alguma coisa. No oriente, meditar é algo bem diferente. É entrar num estado de consciência onde se torna mais fácil compreender a si mesmo. Nisargadatta Maharaj, um mestre indiano, expõe isto com simplicidade:
Nós conhecemos o mundo exterior de sensações e ações mas, do nosso mundo interior de pensamentos e sentimentos, nós conhecemos muito pouco. O objetivo primário da meditação é que nos tornemos conscientes e que nos familiarizemos com a nossa vida interior. O objetivo final é alcançar a fonte da vida e da consciência.

Assim, através da meditação vamos prestar atenção e descobrir como funcionamos. Como agimos em determinadas situações, porque respondemos uma coisa quando gostaríamos de dizer outra, porque fugimos daquilo que mais queremos, porque vivemos mergulhados na ansiedade, na depressão e no cansaço quando queremos apenas a tranqüilidade.

Grande parte dessa confusão é criada pela mente. Podemos dizer que ela é o instrumento de nossa consciência e contém o somatório de nossos condicionamentos, padrões de pensamento, nossa memória e nosso lado racional. A mente é como um lago agitado. Ao ver a lua refletida nesse lago turbulento poderia supor que a própria lua é algo disforme e agitado, mas estaríamos totalmente enganados. Da mesma forma, quando olhamos para o reflexo do nosso Eu - Superior no lago inquieto de nossa mente, não conseguimos perceber sua verdadeira natureza. Meditar nada mais é do que aquietar os turbilhões dos pensamentos, serenar a mente para que possamos reconhecer com clareza nossa essência. Durante esse processo de aquietar a mente damos conta de nossos padrões de pensamento e de ação e, assim, podemos transformá-los.

DICAS PARA A PRÁTICA

 A prática da meditação, embora simples, requer bastante disciplina e regularidade. Abaixo estão algumas dicas de como iniciar sua prática de meditação.

Escolha um lugar sereno onde você possa sentar-se de maneira confortável e com a coluna ereta. Pode ser numa cadeira ou no chão com as pernas cruzadas. Sentar-se sobre uma pequena almofada ajuda a manter as costas eretas. Use roupas que não apertem nem incomodem.
Acender um incenso ou colocar uma música bem suave pode ajudar a criar um clima de tranquilidade no início. Depois de algum tempo, pode ser que você prefira dispensá-los. Evite meditar quando estiver com sono ou muito cansado. Você sentir-se-á frustrado por não conseguir concentrar-se e desanimará da prática diária. Um bom horário para meditar é pela manhã, quando estamos mais tranquilos e descansados. Porém, isso também é individualizável. Se você sentir que consegue melhores resultados à noite, escolha esse horário.
Comece com dez minutos diários. Coloque um relógio para despertar após esse tempo, assim a sua mente não poderá sabotá-lo fazendo-o acreditar que já se passaram muito mais que dez minutos. Não se mova durante esse tempo. O corpo é como um pote e a mente é a água dentro dele. Mover o recipiente faz com que a água também se mova e, lembre-se, o que você quer é que sua mente permaneça quieta e imóvel.
A atenção deve estar voltada para o objeto da meditação (a respiração, um símbolo, etc.) sem que isso necessite de grandes esforços. Caso você disperse, reconduza sua atenção suavemente ao objeto escolhido.
Qualquer coisa que aconteça estará bem. Se houver um monte de pensamentos desfilando pela sua cabeça, se você tiver vontade de chorar ou de rir, se você achar que nunca vai conseguir se concentrar, tudo bem. Apenas continue sentado e, sempre que possível, volte a sua atenção para o objeto sobre o qual está meditando. 

EXERCÍCIO DE MEDITAÇÃO

 Um dos exercícios mais simples é observar a respiração. Sinta o ar entrando e saindo pelas narinas. Acompanhe seu caminho por todo o corpo. Repare nos movimentos da barriga, do peito. Veja se há movimentos ou sensações na pelvis, pernas, cabeça, etc. Esteja com o ar o tempo todo.
Quando estiver em contacto com a natureza, sente-se diante de uma paisagem e observe-a. Ouça os sons, veja as cores, sinta os aromas mas não fique dando nome às coisas ou analisando-as: "esse cheiro deve ser daquela flor", "como é bonita a forma daquela montanha", "o som desses passarinhos relaxa". Apenas ouça, veja e sinta sem criar frases na sua mente, sem ficar tagarelando internamente.
Sente-se diante de uma janela e deixe que a claridade invada seu corpo. Sinta a luz penetrando pelo alto de sua cabeça e fluindo por todo o corpo. Mantenha sua atenção nesse fluxo. Repita o mantra OM durante todo o tempo da sua meditação. Mantras são sons que trazem uma determinada qualidade de energia para quem os vocaliza. O mantra OM é um dos mais antigos do hinduísmo e sua qualidade é o equilíbrio e a serenidade. Ele nos traz energia e ajuda a clarear a mente.
Olhe atentamente para um símbolo ou um objecto que lhe chame a atenção naturalmente. Pode ser um desenho, uma estatueta, um yantra (diagramas cósmicos do hinduísmo), etc. No Yoga, usamos o símbolo do OM para meditar. Olhe para esse símbolo e envolva-se com ele. Observe-o atentamente até que você possa mantê-lo com clareza na sua mente, mesmo de olhos fechados.
Sente-se em silêncio e preste atenção a cada som que surgir ao seu redor. Ouça tudo ao mesmo tempo. Não se detenha em nenhum deles. Nenhum é mais importante do que os outros, nenhum é melhor ou mais agradável. Não julgue, apenas ouça. Evite relacioná-los com os objectos ou seres que os produzem. Permita-se ouvir o som puro e perceber sua qualidade intrínseca. Você pode meditar com as cores também. Pergunte ao seu corpo de qual cor ele necessita para estar em harmonia. Aceite qualquer cor que lhe venha à mente. Imagine um grande jorro de luz dessa cor fluindo sobre você ou mergulhe num oceano tingido com a cor escolhida. Não se preocupe em "ver" a cor, você pode apenas senti-la com seus sentidos interiores.
Observe seus pensamentos e tente perceber o espaço que existe entre um e outro. Mesmo numa mente completamente confusa, os pensamentos surgem e desaparecem deixando um breve espaço entre si. Descubra esse espaço, nem que seja apenas um segundo. Observe-o e você vai perceber que ele começará a se ampliar. Ao penetrar nesse espaço em branco, você estará além da mente.


OBSERVADOR PASSIVO


Existem centenas, talvez milhares, de técnicas de meditação. Cada um deve descobrir a que melhor combina consigo e a que produz melhores resultados. Alguns preferem meditar com mantras, muitos gostam de observar a respiração e outros usam imagens ou símbolos. Porém, o que essas técnicas têm em comum é o fato de despertarem o observador passivo.
Eu chamo de observador passivo aquela parte nossa que se mantém distante da turbulência da nossa vida diária. Ele é como um sábio que olha o vilarejo do alto de uma colina. Ele vê as pessoas correndo de um lado para outro, as crianças brincando, um cachorro procurando comida, alguém morrendo, um bebe nascendo, a geada queimando a colheita e nada disso o afeta. Ele permanece sentado no alto de seu monte, pois sabe que a dor ou a alegria brotam da mesma fonte e nenhuma delas é permanente. O observador passivo sabe que a verdadeira felicidade pertence ao “Eu Superior” e que quando estamos conscientes dele, nada mais nos afeta.
Mas ele também é um grande professor. Se você ficar com alguém 24 horas por dia observando como ele come, como se veste, como fala e age, como dorme, no final de uma semana você conhecerá muito dessa pessoa. Assim, se nos observarmos tempo suficiente, aprenderemos muito a nosso respeito. Aprenderemos como é que funcionamos, como agem nossos pensamentos e sentimentos, como eles influenciam nossas escolhas, etc. Quando desenvolvemos o observador passivo, podemos olhar de longe a paisagem de nossa vida e encarar os desafios que ela nos propõe com isenção de ânimos, sem deixar que o emocional nuble nossa percepção. É por isso que é tão fácil aconselhar um amigo com problemas. Como não estamos envolvidos emocionalmente, temos uma visão panorâmica da situação e podemos perceber as falhas e as possibilidades que ele não vê. Quando olhamos as coisas com uma certa distância, entendemos o contexto e os motivos por trás dos fatos. E, com essa compreensão, podemos encontrar saídas criativas, podemos ver portas onde antes parecia existir apenas muros. 

A TÉCNICA

Sente-se confortavelmente e faça algumas respirações profundas.
Comece a observar os pensamentos que lhe chegam. Tome consciência deles e deixe que sumam em seguida. Não os evite nem os incentive.
Não dê continuidade a nenhum pensamento. A tendência da mente é fazer associações. Quando vem o pensamento "preciso pagar uma conta no banco" a mente dá continuidade: "será que tenho dinheiro suficiente? Se não tiver, posso pedir emprestado ao fulano. Caso ele não possa emprestar...". E assim vai. Portanto, corte o fio antes que toda a meada se desenrole.
Tente ver cada pensamento como um quadro estático, como uma cena de um grande video-clip que não merece muita atenção.
A mente está representando uma grande peça diante de você. Mas você não é o protagonista. Você é apenas o espectador. Portanto não se envolva.
Caso haja uma grande confusão de pensamentos fluindo, apenas "olhe" essa confusão. Não tente controlar seus pensamentos, deixe que eles venham da maneira que vierem.
Não espere nada de especial da sua meditação: fogos de artifício explodindo diante de você, deuses e iluminados desfilando, flores de lótus ou luzes maravilhosas. As imagens que surgem podem ser apenas produto da actividade mental, truques da mente para distraí-lo. Portanto, continue apenas observando como outro pensamento qualquer. Não se envolva com a beleza ou beatitude delas. Se elas forem mais que um produto da mente, você saberá.
Com a prática contínua você será capaz de manter a mente em branco e ouvir a voz de sua intuição que também é um atributo do observador passivo.

Iluminação Neuronal

Meditação é muito mais que um exercício de relaxamento. Neurocientistas constatam que exercícios mentais regulares modificam nossas células cinzentas - e, portanto, também nosso modo de pensar e sentir.
por Ulrich Kraft


Vermelho, amarelo, verde. Diante das diferentes cores nas imagens de ressonância magnética funcional, Richard Davidson identifica as regiões do cérebro de seu voluntário que apresentam atividade significativa enquanto este tenta conduzir a própria mente ao estado conhecido como "compaixão incondicional". O tubo estreito do barulhento tomógrafo de ressonância magnética está, com certeza, entre os locais mais estranhos nos quais Matthieu Ricard já praticou essa forma de meditação, central na doutrina budista, nos seus mais de 30 anos de experiência.

Para o francês, o papel de cobaia no laboratório de Davidson, na Universidade de Wisconsin, em Madison, é também uma viagem ao passado - a seu passado como cientista. Em 1972, aos 26 anos, Ricard obteve seu doutorado em biologia molecular no renomado Instituto Pasteur, de Paris. Pesquisador iniciante, com futuro promissor pela frente, decidiu-se pela "ciência contemplativa". Viajou, então, para o Himalaia e passou a dedicar a vida ao budismo tibetano. Hoje, é monge do mosteiro Schechen, em Katmandu, escritor, fotógrafo e, na condição de tradutor, integrante do círculo mais próximo ao Dalai Lama. Ricard, no entanto, retornou à "ciência racional" porque Davidson queria saber que vestígios a meditação deixa no cérebro.

Sem o Dalai Lama, é provável que a insólita colaboração entre o neuropsicólogo e o monge jamais tivesse acontecido. Há cinco anos, ao lado de outros pesquisadores, Davidson visitou o chefe espiritual do budismo tibetano em Dharmsala, local de seu exílio na Índia. Lá, discutiram animadamente as descobertas neurocientíficas mais recentes e, em particular, como surgem as emoções negativas no cérebro. Raiva, irritação, ódio, inveja, ciúme - para muitos budistas praticantes, essas são palavras desconhecidas. Eles enfrentam com serenidade e satisfação até mesmo o lado ruim da vida. "A meta suprema da meditação consiste em cultivar as qualidades humanas positivas. Então, vimos isso como algo que precisaríamos investigar com o auxílio das ferramentas modernas da ciência", conta Davidson.

Ele foi pioneiro nessa área, mas nomes importantes da pesquisa cerebral seguiram seus passos. Com auxílio da medição das ondas cerebrais e dos procedimentos de diagnóstico por imagem, os cientistas buscam descobrir o que nosso órgão do pensamento faz enquanto mergulhamos em contemplação interior. E os esforços já deram frutos. Os resultados dessa pesquisa high-tech, no entanto, dificilmente surpreenderiam o Dalai Lama, uma vez que não fazem senão comprovar o que os budistas praticantes vêm dizendo há 2.500 anos: a meditação e a disciplina mental conduzem a modificações fundamentais na sede do nosso espírito.
No início da década de 90, seria muito difícil que algum pesquisador sério ousasse fazer tal afirmação publicamente. Afinal, uma das leis fundamentais das neurociências dizia que as conexões entre as células nervosas do cérebro estabelecem-se na infância e mantêm-se inalteradas até o fim da vida. Hoje se sabe que tanto a estrutura quanto o funcionamento de nossa massa cinzenta podem se modificar até a idade avançada. Quando alguém se exercita ao piano, além do fortalecimento dos circuitos neuronais envolvidos, novas conexões são criadas, aumentando a destreza dos dedos. O efeito produzido pelo treinamento é algo que devemos à chamada plasticidade cerebral. Em sua curta história, essa plasticidade já foi examinada sobretudo no contexto dos exercícios físicos e dos sinais provenientes do exterior, como os ruídos, por exemplo.

Campeões da mente
Pesquisador das emoções, porém, Davidson queria saber se atividades puramente mentais também poderiam modificar o cérebro e, em caso afirmativo, de que forma isso atuaria sobre o estado de espírito e a vida emocional de uma pessoa. Os budistas vêem sua doutrina como uma "ciência da mente", e a meditação, como meio de treinar a mente. Para Davidson, era natural buscar respostas com esses "campeões olímpicos do trabalho mental".

Seu primeiro voluntário, um abade de um mosteiro indiano, trazia na bagagem mais de 10 mil horas de meditação e, uma vez no laboratório, logo causou surpresa. Seu córtex frontal esquerdo -  porção do córtex cerebral localizada atrás da testa - revelou-se muito mais ativo que o de outras 150 pessoas sem experiência de meditação, estudadas a título de comparação. Como já havia constatado, tal padrão de excitabilidade sinaliza bom estado de espírito - um "estilo emocional positivo", nas palavras de Davidson. Decisiva é aí a relação entre a atividade nos lobos frontais esquerdo e direito.

Nas pessoas mais infelizes e pessimistas, o predomínio é do lado direito - em casos extremos, elas sofrem de depressão. Tipos otimistas, ao contrário, que atravessam a vida com um sorriso nos lábios, têm o córtex frontal esquerdo mais ativo. Experimentos mostraram que essas pessoas superam com mais rapidez emoções negativas, como as que necessariamente resultam, por exemplo, da contemplação das fotos de uma catástrofe. Fica evidente que essa região cerebral mantém sob controle os sentimentos "ruins" e, dessa forma, talvez responda também pelo equilíbrio mais feliz e pela paz de espírito que caracteriza tantos budistas.
A fim de comprovar essa suposição, Davidson continuou testando mais monges e, dentre eles, Matthieu Ricard. Com todos, o resultado foi o mesmo. "A felicidade é uma habilidade que se pode aprender, tanto quanto um esporte ou um instrumento musical", concluiu o pesquisador. "Quem pratica fica cada vez melhor."

De imediato, choveram críticas: como podia ele saber, afinal, se aqueles mestres da meditação já não possuíam cérebro "feliz" antes mesmo de pisar num mosteiro? A objeção não poderia ser descartada assim, sem mais. Por isso mesmo, seu grupo lançou-se a novos estudos. Os pesquisadores recrutaram voluntários entre funcionários de uma empresa de biotecnologia, dividindo-os em dois grupos aleatórios. Metade formou um grupo de controle, enquanto os 23 restantes receberam treinamento em meditação ministrado por Jon Kabat-Zinn, um dos mais conhecidos mestres americanos da chamada mindfulness meditation. Nesse exercício mental, trata-se de contemplar de forma imparcial e isenta de juízo os pensamentos que passam pela cabeça, como se assumíssemos o ponto de vista de outra pessoa. As aulas ocuparam de duas a três horas semanais, complementadas por uma hora diária de treino em casa.

Como se supunha, o treinamento mental deixou vestígios. De acordo com as medições efetuadas por eletroen-cefalograma (EEG), a atividade no lobo frontal daqueles que participaram do curso de meditação deslocou-se da direita para a esquerda. Isso refletiu em seu bem-estar: os voluntários relataram diminuição dos medos e um estado de espírito mais positivo.

Entre os que não meditaram, nenhum deslocamento se verificou no padrão das ondas cerebrais. Dessa vez, porém, Davidson conteve-se na avaliação de seu estudo, que não autorizaria conclusões definitivas. Mas é provável que, em segredo, tenha se alegrado com a perfeição com que os novos resultados corroboravam sua hipótese inicial: a meditação é capaz de modificar de forma duradoura a atividade cerebral. E, ao que parece, isso funciona não apenas para os mestres da reflexão espiritual, mas também para leigos.
Emoções básicas
Nesse meio tempo, Paul Ekman, uma das estrelas da cena neurocientífica, interessou-se também pela figura do monge. Na verdade, o psicólogo da Universidade da Califórnia, em São Francisco, ocupa-se das emoções básicas, ou seja, daquelas reações emocionais fundamentais que nos são inatas - o susto que nos faz tremer as pernas, por exemplo, quando um rojão explode inesperadamente perto de nós. Respondemos de forma automática a esses ruídos súbitos, graças ao startle reflex, o reflexo de susto. Dois décimos de segundo após a explosão, sempre os mesmos cinco músculos da face se contraem e, passados outros três décimos de segundo, nossa expressão facial se descontrai. Essa reação de susto é sempre idêntica em todas as pessoas, e isso porque, simplificando, assim é o "cabeamento" do cérebro. Como todos os reflexos comandados pelo tronco encefálico, também essa reação escapa ao controle da consciência, isto é, não se deixa reprimir intencionalmente. É, pelo menos, o que reza o estágio atual do nosso conhecimento.

Que, no entanto, nem todos se assustem com a mesma intensidade era uma questão que interessava Ekman havia algum tempo. O motivo é que a intensidade individual da contração muscular permite inferir o estado de espírito de uma pessoa. Quem sente emoções negativas com freqüência - em especial, medo, raiva, pesar e nojo - apresenta um startle reflex bem mais pronunciado que pessoas tranqüilas.

Por essa razão, Ekman estava autorizado a esperar uma reação de susto abaixo da média ao testar um lama budista e solicitar-lhe que buscasse ocultar ao máximo a inevitável contração muscular. Ainda assim, o resultado o deixou perplexo, uma vez que praticamente nada se moveu no rosto do monge. "Quando ele tentou reprimir o susto, a reação quase desapareceu", relatou Ekman, incrédulo. "Nenhum pesquisador jamais encontrou alguém capaz de fazer isso." Nem mesmo um som tão alto como um tiro de revólver assustou o lama. O motivo, na explicação do próprio monge: meditação. "Enquanto eu rumava para o estado aberto, a explosão me pareceu mais suave, como se eu estivesse bem longe." Bastante espantoso, do ponto de vista neurocientífico, é que o monge obviamente conseguiu, por força da vontade, modificar uma reação do cérebro que, na verdade, é automática.

Ao que parece, o órgão do pensamento dos budistas em meditação funciona de modo diferente da massa cinzenta do homem comum - mas como? Em busca de respostas, Olivia Carter e Jack Pettigrew acabaram indo parar na parte indiana do Himalaia, em direção a Zanskar, onde se encontram mosteiros budistas muito antigos. Lá, os pesquisadores da Universidade de Queensland, Austrália, investigaram um fenômeno de que a ciência vem se ocupando desde o século XVI: a chamada rivalidade binocular ou perceptiva.
Em geral, não constitui problema para o cérebro fundir numa única imagem a informação visual recebida pelos olhos. Os "instantâneos" percebidos pelos olhos direito e esquerdo encaixam-se à perfeição, porque ambos os lados contemplam a mesma cena. Mas o que acontece quando, por meio de um aparelho apropriado, cada olho vê uma imagem diferente - digamos, o esquerdo, listras azuis horizontais, e o direito, listras azuis verticais? Não podemos ver as duas coisas ao mesmo tempo, razão pela qual o cérebro resolve a disputa de forma diplomática: primeiro, decide-se por uma das imagens para, então, passados alguns poucos segundos, mudar para a outra. E sai pulando daqui para lá e de lá para cá: nossa percepção consciente alterna sem cessar as imagens percebidas por um olho e pelo outro.

Decerto, se concentrarmos toda a nossa atenção numa das imagens, ela se manterá por mais tempo diante do nosso olho interior, mas essa forma de balizamento é bastante limitada. Algumas características das imagens modulam a rivalidade binocular. Se confrontados a um só tempo com um estímulo visual fraco (finas linhas verticais, por exemplo) e outro forte (um grosso traço horizontal), voluntários vêem o último por mais tempo. Em virtude desses dois efeitos, o fenômeno suscita muita discussão neurocientífica, já que, no fundo, trata-se de como o cérebro regula a percepção visual. A modalidade do estímulo, ou seja, as imagens apresentadas aos olhos, determina para que lado penderá a disputa - ou seria isso algo controlável de forma deliberada?

O controle deliberado é a resposta certa - é o que afirma a descoberta, surpreendente até para especialistas - que o grupo de Olivia Carter trouxe de sua expedição investigativa ao Himalaia. Ao menos, essa é a conclusão que se aplica ao objeto específico de estudo da pesquisadora: 76 monges budistas com intensa prática de  meditação, com idade entre 5 e 54 anos.

"Na meditação, pessoas experimentadas são capazes de alterar de forma mensurável as flutuações normais do estado de consciência a que a rivalidade binocular induz." Assim resumem os cientistas os resultados obtidos, publicados em junho na revista Current Biology.

Carter solicitou a seus voluntários que praticassem a chamada meditação focada em um só ponto. Eles concentraram-se por inteiro num único objeto ou pensamento. Durante essa prática, ou pouco depois dela, os monges, dotados de óculos especiais, foram obrigados a contemplar ao mesmo tempo dois padrões diferentes - um para cada olho. Com o auxílio do mergulho meditativo, mais da metade conseguiu prolongar nitidamente cada fase das comutações típicas da rivalidade binocular. Alguns foram capazes até mesmo de reter uma imagem por mais de cinco minutos - façanha impensável para os voluntários sem experiência meditativa empregados para comparação, que, em média, limitaram-se a reter cada imagem por 2,6 segundos. O feito, no entanto, revelou-se dependente da técnica de meditação utilizada. Quando, em vez da meditação focada em um só ponto, os monges empregaram outro método - voltado antes a um mergulho interior mais genérico que a um objeto concreto -, a alternância constante das imagens manteve-se a habitual. Decisivo, pois, para a estabilização da percepção visual é não apenas a meditação em si, mas o modo como ela é praticada.
Concentração é tudo
Além da rivalidade binocular, outro fenômeno interessava aos pesquisadores australianos: a "cegueira induzida por movimento". Também ela escapa ao controle consciente - ou, pelo menos, assim se pensava. Nesse tipo de experimento, o voluntário contempla uma grande quantidade de pontos que disparam por uma tela. Entre eles, porém, vêem-se alguns pontos fixos, em geral de outra cor. A requerida concentração nos exemplares em ágil movimento faz com que os imóveis pareçam sumir, como se o cérebro os apagasse. Mas não por muito tempo: volta e meia, eles tornam a se imiscuir por um instante na percepção, e o participante não tem como impedir que o façam.

Um dos monges, no entanto, não teve dificuldade alguma com isso. O eremita, que se dedicava havia décadas e em total solidão ao mergulho interior, pôde perfeitamente eliminar os pontos fixos que em geral afloram cintilantes à consciência. Mais de 12 minutos se passaram até que ele anunciasse o reaparecimento de um deles. A partir das alterações nas funções visuais observadas, a equipe deduziu que, na mente desses mestres da meditação, algumas coisas transcorrem de modo não usual. "Diferentes modalidades de meditação e tempos de treinamento diversos conduzem a modificações de curto e longo prazo no plano neuronal", concluíram os pesquisadores.

Seu colega Richard Davidson vai gostar de ouvir isso, sobretudo porque, em 2004, também ele encontrou outras comprovações dessa tese, graças à ajuda de Matthieu Ricard e de mais sete monges enviados pelo Dalai Lama ao laboratório em Madison. Eram todos mestres da contemplação mental, trazendo na biografia algo entre 10 mil e 50 mil horas de meditação - objetos de estudo ideais para as neurociências, como crê o ex-cientista Ricard: "A fim de verificar que porções do cérebro se ativam em diversos estados emocionais e mentais, são necessárias pessoas capazes de atingir esses estados e permanecer neles com lucidez e intensidade".

No caso dos monges de Davidson, a forma de meditação solicitada foi aquela conhecida como compaixão incondicional: amor e compaixão penetram na mente, fazendo com que o praticante se disponha a ajudar os outros sem qualquer reserva. Os monges deveriam se manter nesse estado por um curto período de tempo e, em seguida, deixá-lo. Enquanto isso, Davidson registraria suas ondas cerebrais com auxílio de 256 sensores distribuídos por toda a cabeça. A comparação com um grupo de novatos na prática da meditação revelou diferenças gritantes. Durante a meditação, a chamada atividade gama sofreu forte aumento no cérebro dos monges, ao passo que mal se alterou nos voluntários inexperientes.
Além disso, essas ondas cerebrais velozes e de alta freqüência esparramaram-se por todo o cérebro dos lamas. Trata-se de um resultado bastante interessante. Em geral, ondas gama só aparecem no cérebro por um breve período de tempo, limitadas não apenas do ponto de vista temporal, mas também em termos espaciais.

Que significado elas têm, os neurocientistas ainda não sabem dizer. Essas ondas cerebrais ritmadas, com freqüên-cias em torno de 40 hz, parecem acompanhar grandes desempenhos cognitivos - momentos de concentração mais intensa, por exemplo. Talvez representem o estado de alerta extremo, descrito por tantos praticantes da meditação, especulam alguns. Portanto, por mais relaxado que um monge budista possa parecer, seu cérebro não se desliga de modo algum enquanto ele medita. Ao contrário: durante o mergulho espiritual, fica evidente que está, na verdade, a toda. "Os valores medidos em Ricard estão de fato acima do bem e do mal", relata o psicobiólogo Ulrich Ott com audível espanto. Mas o que fascina ainda mais o pesquisador é o fato de as estimulações terem atravessado de forma tão coordenada todo o cérebro dos lamas. E a razão do fascínio é que há ainda uma segunda hipótese a respeito do significado e do propósito das ondas gama, hipótese que, aliás, envolve um dos maiores mistérios da pesquisa cerebral: a questão de como surgem os conteúdos da consciência.

Quando tomamos um cafezinho, o que percebemos conscientemente é a impressão geral - os componentes isolados são processados pelo cérebro em diversas regiões. Uma reconhece a cor preta, outra identifica o aroma típico, uma terceira, a forma da xícara e assim por diante. Mas não se descobriu até hoje que área cerebral junta todas as peças desse quebra-cabeça. Por isso, os estudiosos da consciência supõem que os neurônios envolvidos se comuniquem por intermédio de uma espécie de código identificador; - a freqüência gama. Quando as células nervosas para "preto", "aroma" e "xícara" vibram juntas a uma freqüência de 40 hz, o cafezinho surge diante do nosso olho interior. De acordo com essa tese  - e diversos experimentos parecem confirmá-la -, as ondas gama constituiriam, portanto, um tipo de freqüência superior de controle que sincronizaria e reuniria regiões diversas, espalhadas por diferentes partes do cérebro.

Isso explicaria por que a meditação é tida como um caminho para alcançar outros estados de consciência. Em condições normais, as oscilações gama extremamente coordenadas que Davidson observou nos monges jamais ocorreriam, acredita Ott. "Se todos os neurônios vibram em sincronia, tudo se unifica, já não se distingue nem sujeito nem objeto. E essa é precisamente a característica central da experiência espiritual."

Mesmo antes da meditação, a atividade gama no cérebro dos monges era visivelmente mais intensa que no restante dos voluntários, em especial sobre o córtex frontal esquerdo, tão decisivo para o equilíbrio emocional.

Na opinião de Davidson, essa é mais uma prova de que, pela via da meditação - ou seja, do trabalho puramente mental -, é possível modificar aspectos específicos da consciência e, portanto, da personalidade como um todo. "As conexões no cérebro não são fixas. Isso quer dizer que ninguém precisa ser para sempre o que é hoje." Disso, Ricard não tinha dúvida nenhuma, mesmo antes de sua visita a Madison: "Meditação não significa sentar-se embaixo de uma mangueira e curtir o momento. Ela envolve profundas modificações no ser. A longo prazo, nos tornamos outra pessoa".

-Tradução de Sergio Tellaroli

Para conhecer mais
O monge e o filósofo: o budismo hoje. Jean-François Revel e Matthieu Ricard. Mandarim, 1998.

Studying the well-trained mind. M. Barinaga, em Science, 302 (5642), págs. 44-46, 2003.

Meditation alters perceptual rivalry in tibetan buddhist monks. O. Carter et al., em Current Biology, 15 (11), págs. R412-413, 2005.

Alterations in brain and immune function produced by mindful meditation. R. Davidson et al., em Psychosomatic Medicine, 65, págs. 564-570, 2003.

Long-term meditators selfinduce high-amplitude gamma synchronity during mental practice. A. Lutz et al., em Proceedings of the National Academy of Sciences, 101 (46), págs.
16369-16373, 2004
Ulrich Kraft é médico e jornalista científico.