Este é o homem mais
feliz do mundo?
Segundo a ciência,
a resposta é sim. Mas o próprio monge francês Matthieu Ricard diz que a questão
do título não importa. Mergulhe na mente do budista (e Phd em biologia) e
entenda por que você não precisa viver em um mosteiro para ser feliz. Basta
começar a meditar
TEXTO E FOTOS: HAROLDO CASTRO, DE KATMANDU
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Inspiração nas alturas: Matthieu Ricard no mosteiro Shechen, em Katmandu, Nepal. O monge
francês vive no Himalaia há 36 anos
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No ano passado recebi centenas de e-mails
de correntes. Um deles era sobre o "homem mais feliz do mundo". Abri
o arquivo, vi que se tratava de um monge francês residente no Himalaia e depois
descartei o e-mail. Retive o nome do afortunado, mesmo achando estra-nho que um
budista pudesse fazer tanto marketing pessoal. Alguns meses depois, quando
preparava minha viagem ao Nepal, lembrei que o tal monge da internet vivia em
Katmandu e fui atrás dele.
Matthieu Ricard mora no monastério
Shechen, no bairro tibetano Bouda. Para chegar lá, naveguei por um emaranhado
de ruelas. Passei por lojas de artesanato para turistas e de artigos religiosos
para devotos. Entrei e dei de cara com um imponente e colorido prédio quadrado,
de arquitetura tibetana: o templo principal. Ao seu redor estão os aposentos dos
religiosos, com dezenas de portinholas enfileiradas em dois andares. Gyurmed
Lodro, um monge nepalês de 29 anos, recebe-me. "Somos 300 aqui. Os mais
idosos vieram como refugiados do Tibete, chegaram cruzando as montanhas. Os
jovens nasceram no Nepal ou na Índia", diz Gyurmed. Ele me mostrou a
clínica do monastério, um trabalho social que beneficia a comunidade tibetana
local. "Os pobres pagam apenas a soma simbólica de 20 rúpias (R$0,50).
Atendemos 45 mil pacientes por ano com homeopatia, acupuntura, medi-cina
natural tibetana, clínica dental e medicina da mulher." Orgulho dos
membros do mos-teiro Shechen, a clínica é financiada por doações de budistas
estrangeiros e os direitos autorais dos livros de Matthieu Ricard.
Gyurmed levou-me até o escritório do monge francês, no segundo andar de um dos prédios de Shechen. Ricard está visivelmente ocupado. Sobre sua mesa de trabalho, repleta de papéis e livros, repousa um passaporte europeu. "Viajo amanhã para Paris. Enquanto conversamos, aproveitarei para arrumar minha papelada", diz. Conto que o procuro por causa de um spam. Ele sorri, abana a cabeça e dá um suspiro profundo. "Nunca teria me autoproclamado como o homem mais feliz do mundo. Isso começou com um documentário da televisão austríaca. Em seguida, o jornal britânico 'The Independent' publicou uma reportagem anunciando que eu era a pessoa mais feliz do mundo", afirma. "O que aconteceu é que participei de um estudo na Universidade de Wisconsin [EUA], para medir os benefícios da meditação. Todos os 12 voluntários possuíam uma longa experiência, com mais de 10 mil horas de práticas meditativas", diz Ricard.
Gyurmed levou-me até o escritório do monge francês, no segundo andar de um dos prédios de Shechen. Ricard está visivelmente ocupado. Sobre sua mesa de trabalho, repleta de papéis e livros, repousa um passaporte europeu. "Viajo amanhã para Paris. Enquanto conversamos, aproveitarei para arrumar minha papelada", diz. Conto que o procuro por causa de um spam. Ele sorri, abana a cabeça e dá um suspiro profundo. "Nunca teria me autoproclamado como o homem mais feliz do mundo. Isso começou com um documentário da televisão austríaca. Em seguida, o jornal britânico 'The Independent' publicou uma reportagem anunciando que eu era a pessoa mais feliz do mundo", afirma. "O que aconteceu é que participei de um estudo na Universidade de Wisconsin [EUA], para medir os benefícios da meditação. Todos os 12 voluntários possuíam uma longa experiência, com mais de 10 mil horas de práticas meditativas", diz Ricard.
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Arte e meditação: monge chega a um templo do mosteiro Tashilhunpo, em
Shigatse, no Tibete, para sua prática diária
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Os participantes enfrentaram uma bateria
de eletroencefalogramas e tomografias cerebrais. Os resultados comprovaram que
o grupo apresentava um alto nível de ondas gama (de "emoções
positivas") no córtex pré-frontal esquerdo, local associado com a
felicidade e a alegria. No lado direito, que lida com ansiedades e frustrações,
as ondas eram inexistentes. Talvez para exercitar a humildade, Ricard não
confirma que seus resultados foram os melhores. "A importância da pesquisa
foi provar que a mente é maleável. As conexões no cérebro não são fixas. Com
esforço e tempo, elas podem ser modificadas, assim como a maneira como
interpretamos o mundo", diz.
Filho do filósofo Jean-François Revel
e da pintora Yahne Le Toumelin, o monge é autor de vários livros. Dois estão
disponíveis no Brasil (veja o quadro "Vá fundo"). Ele também é
fotógrafo, com vários ensaios publicados. Por ter nascido em um berço rodeado
de intelectualidade e arte, pergunto se as influências externas ajudam uma
pessoa a ser feliz. "Na busca da felicidade, geralmente olhamos para fora,
procuramos elementos externos e queremos possuir bens materiais. Quando as
coisas vão mal, queremos corrigir externamente. Mas o controle que temos dos
elementos exteriores é limitado e geralmente ilusório", afirma.
"Apenas uma porção pequena da felicidade, digamos entre 10% e 15%,
relaciona-se com condições externas. Certamente, é mais difícil ser feliz se
não ultrapassamos o estado de miséria. Uma boa educação, ter acesso à
informação ou viajar ajudam. A genética também entra nessa equação: cerca de 25%
de nosso potencial parece ser determinado por nossos genes. Mas tudo isso não é
o suficiente para um indivíduo alcançar a felicidade. Os restantes 60% ou mais
dependem de nosso estado mental. É a mente que traduz as condições externas em
felicidade." Ou em sofrimento.
As dores da alma formam um tópico
notável no budismo. A busca de sua compreensão e eliminação foram o tema
central do primeiro sermão de Sidarta Gautama, o Buda, no ano 528 a.C. em
Sarnath, na Índia. O ensinamento tem quatro princípios simples, chamados de
Nobres Verdades. A vida é uma cadeia de sentimentos. A causa do sofrimento é o
apego, a ignorância ou a aversão. Para que o sofrimento cesse, é necessário
cultivar o amor incondicional, desprender-se dos objetos de desejo e vencer a
ignorância e a aversão. Enfim, para que isso aconteça, o Buda recomenda seguir
um caminho de oito passos corretos (a compreensão, o pensamento, a linguagem, a
ação, o modo de vida, o esforço, a consciência e a concentração corretos),
sempre desenvolvendo a compaixão.
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Monja feliz: Todzi, 18 anos, descobre o Tibete em sua primeira peregrinação.
Ela mora na China, mas seus antepassados são tibetanos
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"A mente é a especialidade do
budismo", diz Ricard. "Não considero o budismo uma religião. Não
perdemos tempo discutindo Deus. A questão é irrelevante. Buscamos saber como a
mente funciona. Precisamos refinar a percepção de nossa realidade." Aí é
que entra o papel da meditação. Uma mente mais tranqüila responde melhor aos
desafios da vida, enquanto as emoções descontroladas levam ao caminho oposto. O
ódio, a inveja, a raiva ou a arrogância são sentimentos que minam a felicidade.
Parece simples. Mas por que continuamos sofrendo? Como se estivéssemos
enfeitiçados por uma obsessão, persistimos em focar nossa atenção no
sofrimento. Isso só provoca o aumento da agonia. Quando um tema nos angustia,
por que nossos pensamentos insistem em regressar à origem da dor? A resposta
está em nossa própria mente: ela não tem o treinamento adequado. Os sábios
budistas confirmam que não basta erradicar todo e qualquer tipo de sofrimento
para encontrar a felicidade. "Além de deixar de lado as emoções negativas,
também devemos desenvolver as positivas", diz Ricard.
O OUTRO CANDIDATO
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O título de
"homem mais feliz do mundo" de Matthieu Ricard é dividido com ao
menos mais um monge budista. O nepalês Yongey Mingyur Rinpoche participou das
mesmas pesquisas que Ricard, supervisionadas pelo professor Richard Davidson,
da Universidade de Wisconsin (EUA). Rimpoche também alcançou elevados índices
de atividade das ondas gama. Escreveu um livro, já traduzido para o
português, "A Alegria de Viver". Seu colega Matthieu Ricard assinou
o prefácio da edição francesa. "Em sua essência, o budismo é muito
prático", escreve Mingyur Rinpoche. "Trata-se de fazer coisas que
encorajem a serenidade, a felicidade e a confiança - e evitar outras que
provoquem a ansiedade, a desesperança e o medo."
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Ele se baseia no princípio de que
dois estados mentais não podem ocorrer simultaneamente. "Podemos ter um
acesso de amor e outro, imediatamente depois, de ódio. Mas não podemos sentir
ódio e amor ao mesmo tempo por uma mesma pessoa ou objeto", afirma o
monge. "Devemos habituar nossa mente a substituir emoções negativas por
positivas. Quanto mais cultivarmos o amor e a bondade, menos espaço teremos
para a raiva e o ódio em nossa paisagem mental. É importante saber quais são os
antídotos que correspondem a cada uma de suas emoções negativas."
Há quem diga que a felicidade é uma
sucessão de pequenos prazeres. Mas Ricard ressalta que "o prazer é uma
experiência fugaz - depende de circunstâncias exteriores, de um momento ou
lugar específico. Quase sempre está ligado a uma ação". Ele lembra que
algumas pessoas sentem prazer até em se vingar e em torturar os outros. "A
felicidade autêntica não está ligada a uma atividade. É um estado de ser, um
profundo equilíbrio emocional." Ricard argumenta que não existe razão para
não buscarmos sensações agradáveis, sejam elas relacionadas com a natureza, com
a arte ou ao lado de pessoas queridas. "Os prazeres tornam-se obstáculos
somente quando perturbam o equilíbrio da mente e nos levam à obsessão por
gratificações. O prazer não é inimigo da felicidade. Se é vivido num estado de
paz interior e liberdade, o prazer adorna a felicidade, sem obscurecê-la",
afirma.
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Retratos da felicidade budista (da esquerda para a direita):
a paz de espírito de um noviço do monastério Taktsang, no Butão; a alegria de
uma birmanesa no santuário da Rocha Dourada em Kyaikhtiyo, Mianmar; o sorriso
franco de um jovem religioso do mosteiro Hemis, no Ladakh; a introspecção de
um monge em prece no templo Jokhang, no Ladakh. Seus dedos entrelaçados
formam um gesto sagrado, um mudra
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Meu diálogo com Ricard estende-se por
mais tempo do que eu esperava. Apesar de ele não demonstrar nenhum estresse com
os preparativos de sua viagem, meu desconfiômetro avisa que devo encerrar a
entrevista. Ele reconhece a gentileza e, generoso, oferece, em formato
eletrônico, os originais em francês de seus dois livros mais célebres. Na saída
de seu escritório, encontramos um casal de budistas franceses. Eles perguntam
qual deve ser a postura em relação à China e ao Tibete. "Conversem com
amigos, discutam o tema e falem com seus deputados. É importante informar a
todos sobre o genocídio cultural que acontece no Tibete", responde.
Saio do escritório de Ricard e ouço
toques de tambores. Atraído pelo som, chego ao templo principal de Shechen.
Alguns monges, visivelmente atrasados para o ritual, retiram suas sandálias e
sobem a escadaria com agilidade. A enorme porta decorada está aberta. Sinto-me
convidado. Depois de conversar com Ricard sobre as vantagens de desenvolver uma
mente mais sadia, em harmonia com o mundo e consigo mesmo, não hesito em entrar
no templo. Encontro uma almofada e sento para meditar. Deixo que os mantras
embalem minha mente. Tomo consciência de onde estou. Agradeço o presente e
lembro-me daquele spam que me inspirou a encontrar um ser humano tão notável
como Matthieu Ricard. Talvez ele não seja o "homem mais feliz do mundo",
mas está fazendo sua parte para ajudar outras pessoas a serem mais felizes.
Haroldo Castro tem mais de 30 anos de experiência como fotógrafo, repórter, diretor de documentários e estrategista de comunicação. Conhece mais de 130 países e morou no Brasil, na França e nos EUA. Encontre um link para seu blog, o ótimo Viajologia, em www.galileu.globo.com
Haroldo Castro tem mais de 30 anos de experiência como fotógrafo, repórter, diretor de documentários e estrategista de comunicação. Conhece mais de 130 países e morou no Brasil, na França e nos EUA. Encontre um link para seu blog, o ótimo Viajologia, em www.galileu.globo.com